501

5.11.14





Parece ser em sonho que o interfone toca intermitente, assim, inconveniente. Enfim, ele acorda do transe em que esteve submerso nos últimos minutos. Sentado no único banco restante na pequena sala do 501, recostado sobre o balcão que separa a cozinha do resto da casa, ele aguarda a subida dela em silêncio. E mesmo de leve, o bater na porta parece ensurdecedor – emudecido ele observa ela surgir de esguelha na porta entreaberta.

Num quase sussurro, ela profere um cauteloso “oi...” e ele, de repente, se vê prendendo a respiração pra disfarçar a ardência nos olhos. Ela parece prever esse drama que entrecorta os cômodos vazios; então se inclina delicadamente para frente e pisa indecisa no apartamento pela primeira vez em semanas. O eco das passadas anuncia uma imensidão de vazio diante deles. E ele se lembra de quando encontraram esse apartamento, depois de tantas visitas frustradas; lembra-se do sorriso que ela abriu ao entrar nesse mesmo cômodo, nesse mesmo vazio. Mas o eco era outro, a luz era mais sutil.

Ele pensa como, no fim, tudo volta ao começo.

O silêncio inicial não é um incomodo; é um rito de passagem, estão se despedindo de tudo o que viveram até ali. Ele se mexe sobre o banco: levanta e enfia as mãos nos bolsos. Ela olha para a janela sem cortinas e para a parede cinza que eles mesmos pintaram num domingo qualquer do setembro passado; é tudo manobra para não olhá-lo nos olhos. Disfarça, e escassa de algo mais útil a dizer só aponta o óbvio, “ahn, é, eu trouxe a cópia da chave. Tá aqui, em algum lugar...”, e mantém o olhar dentro da bolsa, revirando o seu conteúdo. É quase cômico esse desconcerto todo entre eles, “fica tranquila, depois você deixa com o porteiro” e aponta para a bolsa. “Não, mas tá aqui! Eu vim exatamente pra isso”. Silêncio. ‘Pra isso’, esse isso que tem um quê de iceberg no meio da sala de estar; esse isso que é só isso mesmo, sem segundas intenções, sem intervenções amorosas ou desculpas enxabidas. Silêncio – é só o barulho das coisas sendo remexidas dentro da bolsa dela que reverbera no recinto.

Onde é o começo do fim? Como é que se retroage do ponto final à letra maiúscula? Ele rebobina esse recorte de vida e transcreve o fim, não há solução. E que se dane o fim, ele pensa, e se aproxima dois passos. Ela paralisa as mãos dentro da bolsa e o observa com olhos de surpresa por entre as mexas de cabelo que caem sobre seu rosto – ele sempre gostou desse coque mal feito que ela faz no topo da cabeça, e de como algumas mechas sobram sobre os olhos dela.

E que se dane o fim porque a luz que escapa pelo vitro da cozinha traz um tom dourado, quase áureo ao que, um dia, já fora um lar.

Ele quase esquece porque estão ali, quase esquece porque não estão mais juntos; ele quase esquece que não deveria beija-la. Ele quase o faz. E se afasta; torna enfiar as mãos nos bolsos. E ela, ainda assustada, o olha nos olhos enfim. Ele se diverte dessa nova dinâmica imposta entre os dois, “naquela caixa estão as últimas coisas que você deixou aqui”, e aponta para uma pequena caixa com a caligrafia dele em letra maiúscula ‘DELA’. Tudo costumava ser tão deles e ver essa divisão de gênero entre ela e ele era um soco na boca do estômago – era, para ela, o ultimato do fim, as letras que sobem brancas ao término de um filme. Eles não deveriam estar mais ali para ver os créditos, mas não conseguem se mexer.

Antes mesmo de se mover em direção do balcão, ela desiste e resiste em tocá-lo. Atrás dele, ela observa os buracos na parede onde, antes, estava o suporte da TV; lembra das sessões em p&b e das histórias compartilhadas no mesmo cobertor. A boca dela se flexiona em sorriso, mas os olhos continuam sérios; de frente para ele, degringola uma última tentativa de normalidade entre ambos, “acho que é meia-noite, Joe Bradley, eu virei abóbora e preciso ir embora com meu sapato de cristal”. Ele olha o cadarço do tênis desamarrado, pensa em se abaixar para laçá-lo, mas desiste, “é o fim do conto de fadas, Princesa Ann”.

Como se não fossem dois conhecidos se estranhando no meio de uma sala de estar desocupada, ela procura a mão dele e o toca com a ponta dos dedos. Esse é, de fato, o fim. Era como se nunca tivessem sido algo. Nada. “Isso muda nossa dinâmica”, ela diz e observa os dedos dele tremerem suavemente. Um abismo entre eles, a falta de qualquer coisa que fosse. Ressentimento, que fosse. Nada. Nem bom, nem ruim. Nada.

Isso poderia significar muitas coisas. Isso, da frase, era mais do que uma decisão. Era um túnel sem volta. Ele olha para porta, “ainda poderíamos ser amigos”, ela afasta sua mão das dele e dá mais dois passos em direção ao balcão da cozinha americana, “essa dinâmica não nos interessa”.

Como desconhecer uma alma e um corpo, milímetro por milímetro? Ela abre a caixa: alguns DVDs, um livro do Bauman e a caneca de café; o sabor do café dele lhe vem à boca, e a tortura de ter de esquecer o peso dele sobre ela é muito mais do que ela pode aguentar para tê-lo como amigo. Seria preciso desaprender os caminhos e atalhos de um amor desavergonhado para tê-lo como amigo. Seria preciso limitar-lhes a vida íntima para serem amigos de novo. Não que não fossem antes, mas aquilo era um retrocesso degenerado com o qual os corpos não poderiam suportar tal ausência, tal afastamento impreciso; não havia mais como retraçar a linha entre o amor fraternal e o tesão entre ambos.

Ele coça a nuca em sinal de desespero; quer sair correndo dali e quer beija-la uma última vez. Antes fosse só uma despedida como outra qualquer, um término como tantos outros que acontecem a cada minuto no Universo. Antes, de fato, fosse porque o amor acabou – porque se esvaiu de suas veias. Antes fosse por motivos complexos. Acabara por dissonâncias cognitivas.

Então preferem se desconhecer, fingem não saber quem são por doer menos ser assim. O anonimato de um amor mal curado, que nem de longe se parece com os primeiros meses de euforia bilateral. Porque até esse momento, mesmo nos amores, ficam as dores, as queixas e brigas sem sentido; fica um ciúmes sem fundamento e a confiança que naufragou em meio a escuridão de uma comunicação entrecortada. E o abismo cresceu, a escuridão se tornou tão intensa que foi preciso atear fogo ao que restava de bom da vida a dois para conseguirem sair minimamente ilesos do processo de repartição.

Um apartamento que fora, até a grande briga, o refugio do mundo lá fora, agora é uma trincheira desmembrada. E ainda veem-se os grandes buracos causados pelas palavras que atravessavam as vestes; ainda é possível sentir o cheiro da pólvora jogada imprudentemente em direções opostas.

Fragmentaram uma vida a dois por duas meias-vidas a sós. E depois do ‘dia d’, escolheram caminhos opostos para provarem um para o outro a grande incompatibilidade ideológica. Agora permanecem assim, parados, olhares vidrados um no outro, esperando quem vai pular do barco primeiro. Lesionados de tantos impasses, cansados de procurarem motivos para permanecerem adversos, eles nem sabem mais como chegaram aqui; como esvaziaram o apartamento tão rápido sem terem se encontrado sequer uma vez.

Diferentemente do começo, quando tramavam desculpas para se trombarem na fila do pão, hoje discorrem sobre a importância da individualidade humana e, se ao longe, se veem, atravessam a rua: cada um pro seu lado, cada um com a sua vida.

É remorso que ele encontra nos olhos dela ou é apenas curiosidade por um ‘ele’ que ela não sabia não conhecer? Ele mede as palavras, engole algumas e rumina as restantes. Talvez seja isso, o silêncio entre ambos e só.

Ela engole seco. Não há pratos limpos. Não há mais história. Mas parece haver um vestígio dos dias de ontem, do mês passado de outrora. Parece haver um só resquício do amor que não foi o bastante para resistir aos argumentos inflamados sobre a engenhoca chamada vida. E, no fundo, ela sabe e ele compreende também que se disso tudo, fosse só a química necessária, estariam intactos.

Ela ronrona baixinho e ele não resiste o olhar; de uma sinestesia maluca, ele sente o gosto do som que sai da boca dela e chega quase a tocá-la, outra vez. Em deleite austero, ela precipita um fim inevitável, “talvez tenhamos sempre Paris, hãn Rick Blaine?”, e ele se cala, e se perde na linha do horizonte da muvuca paulistana que brota pelo lado de fora da janela. Percebe que a tarde caiu num minuto qualquer em que eles se perdiam nessa dissolução amorosa. Ela franze o cenho e espera em repouso, é estranho não serem mais eles.


Dessa vez, ele não apaga a luz, não fecha a janela. Não é ele que entrega as chaves ao porteiro; dessa vez não é ele que fica na sala vazia, “não há mais Paris, Ilsa Lund”, joga então o molho de chaves na bancada e sai.

QUE TAL MAIS UM?

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