Quarta-Feira
14.7.14
É uma quarta-feira como outra qualquer; os carros se amontoam no cruzamento da Rebouças com a Henrique Schaumann, os jornais já estão pontualmente entregues nas soleiras das portas e portarias dos prédios; notícias já desatualizadas, cravadas em preto no branco. Manchetes manchadas de sangue, vergonha ou qualquer escândalo desimportante para aquela quarta específica.
O mundo ainda reclama da chuva e do trânsito no Twitter. Os
guarda-chuvas se esbarram na estreita calçada da Mateus Grou. A cidade parece
mover em câmera lenta; o vento frio e a demora do raiar de um sol que aqueça as
arestas e superfícies duras da cidade fazem dela mais deserta. A feira montada
na Fernão Cardim, como toda quarta-feira, atrai algumas pessoas que esperam um
pastel matutino e um caldo de cana com limão para acordar o torpor.
O elevador ainda é um lugar de conversas supérfluas, e o tempo se
gasta em si mesmo. É como se tudo ainda estivesse ali como antes; como se ela
ainda fosse a mesma. O telefone ainda toca, o ponto ainda bate no atraso. A
roda ainda roda como todo dia, de 9h às 18h.
E ela gira em torno de seus pensamentos, vai e volta; vai e volta.
“Bom dia”, a secretária, sentada em sua cadeira usual, com seus óculos de aros
finos, prostrados usualmente sobre a ponta de seu nariz imponente. Silêncio. Os
passos no corredor batem apressados no assoalho. A porta ainda range como todos
os dias, a carência por um lubrificante que cale esse gemido arranhado das
dobradiças parece só aumentar.
Mesa-cadeira-computador-email. Olha o calendário. Relatório.
Confidencialidade. Intimidade. Conference
call. Calmante. Café. Conhaque. Jejum. Quarta-feira. Bom dia. Nada de bom. Rotina:
agua a samambaia, olha o movimento dos atrasados que correm para não perder o
emprego. E quer perder o juízo; quer perder o rumo por um instante.
Abre o Chrome, digita “Nepal viagem passagem”, sempre quis conhecer
o Nepal. Engole uma quantidade absurda de café – sem açúcar hoje, por punição.
Batem à porta, minimiza a aba, olha o barulho.
“Bom dia”, por que as pessoas querem adocicar o dia? “hmdia”, ela
responde. “Reunião agora, o relatório ‘tá pronto?”, ele pergunta
desafiadoramente. “Uhum”, ela responde monossilábica. “Quinze minutos”, e sai
da sala.
A vida dela grita dentro de si; veias roucas de gritar um sangue quente
de agonia. Artérias cansadas de bombear tanto veneno para fora. O celular vibra
em cima da mesa, “cê tá bem?”, ela quer responder vá-para-o-inferno, mas
respira. Não pira, não vira do avesso agora. Não chora, engole essas lágrimas
salgadas; a vida não é, nem de longe, esse leite condensado todo, e você sabia quando
entrou nessa espiral em declínio. Bota o relatório para imprimir, olha pela janela e vê outra
janela de frente, alguém digita furiosamente um e-mail qualquer. E quer ser
alguém novo, em um outro lugar; no Nepal talvez. Olha a aba minimizada, se
volta para o relógio no canto da tela, 10 minutos para a reunião do maldito
relatório, quer jogar o relatório pela janela e correr, gritar para um táxi,
parar o trânsito e rumar para o aeroporto; sem mala, sem lenço nem documento.
As impressões terminam de ser expelidas pela impressora amarelada
que, um dia, fora cinza. Olha de novo a notificação do sms “cê tá bem?” que
ecoa em seus ouvidos; pode até ouvir o tom da voz do remetente, sondando com
toda a cautela – coisa que ela odeia – sobre seu estado de espírito. Cinco
minutos, joga o celular dentro da gaveta, arruma o cabelo e sai marchando pelo
corredor.
Dentro de sua cabeça, o silêncio do escritório pela manhã é
irrompido pelos gritos de condenados imaginários que se agitam dentro de suas
celas que beiram o corredor que leva à sala de reunião. São injúrias fictícias
que invadem os ouvidos dela e cambaleiam sua percepção de realidade; são, na
verdade, heterônimos dela mesma, a personificação de seus sonhos e desejos
aprisionados injustamente, sem a oportunidade de defesa. Ela clama por
absolvição em silêncio, e seus anseios se debatem em sua cabeça, querendo fugir
do corredor da morte.
Um desespero intangível se espalha por seu corpo, um calor incontrolável
que sobe dos pés à cabeça. Os olhos se enchem de lágrimas, e seus pés, em um
espasmo involuntário, param de lhe obedecer. Ela para. Prostra sua carcaça
cansada num ponto entre a sua sala e a reunião. Os relatórios que se fodam,
pensa ela por um instante. As outras vidas que se virem sem mim, pondera. “Tá
esperando o que parada aí? Esqueceu algo?”, ele, o mesmo sacana hipócrita de
sempre, indaga ela com sua gravata frouxa e sua camisa amarrotada.
Esqueci a minha vida lá fora, ela pensa e seus olhos ardem; e suas
mãos se contraem tanto que ficam pálidas. Esqueceu a vida numa gaveta qualquer,
num telefonema sem fim, numa balada desimportante. Esqueceu o que é viver sob
as próprias regras, sob o próprio cronograma. Deixou a vida em cada ponto de
ônibus e em cada estação de metrô que atravessava dia apos dia. Foi esmaecendo
dentro do corpo a cada intuição ignorada, a cada descrença pessoal.
“Eeei, tá aí? Ow! A reunião vai começar!”, ele simplesmente não sabe
quando se calar. E ela ri da própria desgraça, sem humor. A cada quarta-feira.
A cada congestionamento na Rebouças com a Henrique Shaumann. A cada esbarrão
confuso e apressado na Mateus Grou. A desgraça anunciada que progride numa vida
sem sentido, sem sensação; que progride a cada sete dias.
Ele atravessa o corredor e para em frente a ela “olha, eu não sei
qual é o seu problema, mas hoje – agora – não é realmente o momento para esse
mimimi”. Ela olha para ele, mas não o enxerga realmente. “Se alguém morreu, nós
pod-...”. “Eu morri”, ela vira de costas pra ele. “Ahn?”, ele enfia as mãos nos
bolsos da calça social dois números maior do que ele. “E morro a cada minuto
que passo aqui dentro”, ela ameaça partir, ele segura um dos pulsos dela.
“Olha, se isso é pelo que aconteceu com a gente, tá na hora de você superar”.
Ela ri. Ela ri abertamente agora; gargalha do narcisismo humano, da tolice da
auto-afirmação. Ela ri de todas as coisas permanentes. De todos os mecanismos
de defesa. Ela ri de toda a infelicidade incrustada em suas decisões mais
efêmeras, em sua busca constante por prazeres instantâneos. E as lágrimas rolam
livremente porque é humor negro; é ácido-irônico.
Pode-se ouvir o barulho do silêncio agora. As portas abertas, os
olhos fixos numa cena tão surreal de rebelião adulta. É como se ela houvesse
sido pega bêbada dentro da escola. Mas agora é uma repreensão silenciosa; a
diretora não grita no meio do corredor. Mas os olhos, atentos, arregalados,
parecem quase idolatrá-la. No fim, ela é a bolha que se desprende e estoura em
realidade. É ela quem rompe a sequência de erros dos quais todos queriam ter
coragem de fazê-lo. Ela é a heroína desses covardes que continuam a remar
dentro da neblina densa sem saber para onde vão; ela é o arquétipo que eles
nunca conseguirão ser. E sua risada, que agora ecoa pelos corredores cheios de
curiosos-covardes é a sirene que anuncia a rebelião solitária. Ela parte.
O Nepal parece atraente numa quarta-feira qualquer. As salas e os
corredores amontoados em dúvidas e cochichos, eventualmente voltarão a ser
apenas recintos rotineiros de passagem. As teclas dos computadores voltarão a
ser digitadas. As reuniões e os relatórios serão concluídos. As notícias
continuarão a chegar às soleiras das portas. Mas ela, ela não é mais parte de um
sistema só. Ela salta para fora desse trem que mantém-se em círculos para
compreender como caminhar; para interligar seu mundo a todos os outros
existentes. Ela quer ser constante numa série de variáveis possíveis.
Volta a sala, tira o celular da gaveta e responde ao sms, “tô
ótima”. As ruas estão desertas, todas as pessoas que deveriam estar no trabalho
já estão. O sol não saiu, e o vento frio a atinge como um sopro de vida nova.
Ela sorri para o céu cinza-chumbo. Por fim, chama um taxi, “para na Fernão
Cardim, por favor? Quero um pastel com caldo de cana”.
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