O Empreendedorismo Amoroso
25.4.14
Entra, joga os sapatos no hall. Liga o som, abre a janela. O vento de noite de outono entra refrescante, as cortinas esvoaçam. O dia pesa sobre os ombros. A solidão ajuda o ócio a manter uma inércia convidativa. Um dia qualquer.
A
campainha toca. Ela, que já estava com as pernas entrelaçadas no sofá, se
levanta num sobressalto. Uma garrafa, um blazer cáqui e um sorriso tímido. “Oi”.
O que ele faz aqui? Tenta burlar a surpresa no rosto, “oi”.
Ela
se apoia na porta entreaberta, os pés descalços, o cabelo emaranhado; ao
natural. “Desculpa vir sem avisar, só queria te entregar isso” e estende a
garrafa na direção dela. O estômago dela revira em antecipação, era justamente
o que precisava agora, nessa hora, nessa noite.
“Sem
problemas, mas, ahn, é, não precisava se preocupar”, ela intercala o olhar
entre a garrafa e os olhos dele; ambos têm o mesmo tom de verde. “Você parecia
cansada”. Ela franze o cenho, “por sms?”. Ele enrubesce e abaixa a cabeça, como
explicar para ela a conexão? Como explicar que ele conhece cada ponto e vírgula
que ela usa? “é, hum, boa noite”, ele se vira.
Ela
olha pra garrafa, abre a porta e o caminho para o apartamento, “companhia?”. O sorriso. Ele enfia as mãos nos bolsos e assente.
Então senta, “muito bom esse som”. Ela sai da cozinha com duas taças em uma mão
e o abridor na outra, “é Chet Faker. Já te falei sobre ele, lembra?”. Claro que
ele lembra, nunca esquece nada do que ela fala. “Acho que sim”.
Ela
senta no tapete, aos pés dele. Entrega a garrafa e o abridor, “esse é o novo álbum
dele. Minha obsessão nesse momento”. Ele sorri para nuca dela, ela é a obsessão
dele nesse momento. Coloca a garrafa sobre a mesa de centro, ela se encarrega
de encher as taças, “acho que teu dia também não foi dos melhores” e entrega
uma pra ele. Ela levanta, segura a gola do blazer dele, pede permissão para
tirá-lo. “Não foi fácil”, ele cede, abre um braço, depois o outro até estar
livre do vestuário. Os olhos estão nela, cruzando a pequena sala, pés no chão;
ele repara as unhas pretas, como pode ser tão incógnita?
Ela
pendura a peça no cabide e volta a sentar no tapete, “hoje é sexta”, ela
pontua. Ele bate os pés no ritmo da música, “acho que tô velho demais pra
isso”, mas é por livre e espontânea vontade que ele está ali. Ela se eleva do
tapete até estar sentada ao lado dele, ele observa as mexas de cabelo que caem
sobre os olhos dela agora, “tô um caco, né? A maquiagem já foi há horas”. Ele
gosta assim, de vê-la de verdade. “tá nada”. E só, se reprime por ser covarde.
Ela sorri educadamente.
Os
dedos dela contornam a borda da taça com calma, “acho que esqueci de te
agradecer. Brigada, tava mesmo precisando disso”. Disso, ela enfatiza e mostra a
taça. Ele retrai. Pondera. É isso? São eles? É o tempo? O que ele faz ali? Não
é pra ele. Não é ele, não é pra ser assim. Ele ameaça levantar.
Ela
tem tido momentos difíceis; tem feito escolhas erradas. Tem, na verdade, se
omitido. Então pondera. Olha a borda da taça e procura respostas. Olha a janela
entreaberta e espera. Ele não é real, não assim. As coisas não fazem sentido e,
para ela, elas sempre precisam fazer sentido. Ele ameaça levantar, ela hesita,
testa sua audácia de perto. Por fim, deixa-se levar e descansa os dedos
abertamente sobre o joelho dele agora, “eu nem sabia que precisava tanto assim
da companhia até você tocar a campainha”.
Ele
se ajeita no sofá sob ela. Ela cruza as pernas em ‘x’, sente-se à vontade na
presença dele. Debruça sobre o encosto do sofá, se faz frente a frente com ele.
Olha-o nos olhos, profundos. A surpresa de vê-lo, de fato, ali, a pega de surpresa.
Ele está ali, ela pode ver. Ela é que não está mais, “todo mundo, às vezes,
precisa de companhia”, ele toma outro gole do vinho, o pomo de adão sobe e
desce e ela não está mais ali. “E seus amigos?”, ela olha para o canto do
tapete que está no avesso.
Ele
brinca com os nós dos dedos que estão sobre o encosto do sofá, “quando seus
amigos são seus sócios, no fim do dia, tudo o que você quer é distância”, ela
quer ele perto e não entende o porquê desse desejo repentino. “Entendo bem”, e
levanta. Ele é mais um daqueles, desses normais que passam. Ele é só mais um. E
vai arrumar o tapete.
Ele
observa as costas languidas dela, onde o cabelo termina e o pescoço fica
exposto. De costas, ela não o vê elevar o braço para tocá-la e recuar na
sequencia. “Ser empreendedor pode ser enlouquecedor”, ele conversa com os
livros na mesa de centro; de arte, de música, de tudo. Ela é todas as coisas e
ele quer ser uma delas, ele quer estar nela. “Quer comer algo? Acho que tenho
queijo na geladeira”, o ruído que vem do estômago dele está longe de ser fome;
é ansiedade pura e púrpura. “não, obrigado,” ela, que ainda está de costas, foge
para a cozinha.
Ele
se levanta, coloca a taça sobre a mesa e olha o relógio; é hora de lutar ou
correr. “acho que tá na minha hora” e passa os dedos sobre as lombadas dos
vinis dela. “Tá cedo...”, ela aparece no batente da porta e ele quer beijá-la
agora.
Ele
coloca as mãos nos bolsos, ela observa intrigada. Olha para o relógio que
avança por de trás dele; nunca esteve tão certa da dúvida que carrega consigo.
Nunca quis tanto arriscar como agora, “te acompanho então, assim você volta”. O
sorriso, de novo; aquele que ele parece ter guardado só pra ela. O blazer está
de volta ao seu lugar, moldando os ombros dele. E estão em movimento, por fim.
Ela
caminha na frente, taça em punho. Ele vem logo atrás. Ela para, abre a porta e
espera ele passar. Estão frente a frente, a soleira da porta como trincheira de
uma revolução prestes a explodir. Ele abaixa para beijá-la, timidamente, no
rosto. Ela se vira.
Se
beijam.
Se
sentem pela primeira vez e implodem numa catarse extraordinária.
Porta
adentro, outro universo se expande. Espicha-se uma história a dois, mas essa já
não é da nossa conta; é um infinito particular pertencente somente a quem dele
compartilha.
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