Sobre saudades, Nico & Lou Reed

17.3.14


O apartamento está engolido pela escuridão. O abajur de pé no canto da sala e a tela do Macbook criam sombras que fazem companhia a um cômodo quase sem móveis. A cidade parece silenciar-se para ouvir ao disco qualquer que gira na vitrola; o chiado emitido pelo arrastar da agulha no vinil embala a feitura do roteiro pela metade.
Ela olha para o cursor que pisca insistentemente na nova página em branco e, como quem espera que uma cena inteira apareça instantaneamente, pisca de volta por de trás dos grandes óculos de aros pretos –que ainda é obrigada a usar mesmo depois da Lasik. Sente-se humilhada: é como se a tal da Inspiração gozasse da cara dela, como se risse por de trás da tela de retina. Ela ergue a grande taça de Pinot Noir de cima da bancada e encara o bloqueio criativo. 
Olha o relógio de parede e verifica, 22h47. Esteve sentada no mesmo lugar por mais tempo do que deveria. Apoia a perna esquerda na cadeira cor de vinho, abraça o joelho e encosta o queixo ali. Veste nada além de uma calcinha roxa e uma camiseta que, num ato desesperado de saudade, foi retirada da pilha de roupas para lavar; selecionara a já gasta Venus in Furs do Velvet Underground de milnovecentosealgumacoisa que ele tanto gosta. O cheiro dele e o conforto da longa camiseta parecem mais apropriados para uma quinta-feira a noite. E chega a ouvir a gargalhada dele ao zombar da "mulherzice" dela; quase o vê encostado no batente da porta olhando para ela com olhos de quem sabe o que quer, pode quase sentir o gosto dele entre os goles de vinho tinto.
Confere o relógio de novo, 22h52. Deveria parar. Lembra da louça na pia, da roupa no cesto e franze o cenho. Ser roteirista em seus desejos costumava ser mais fantástico. O fato é que quando todo mundo vai pra casa descansar, é o momento em que seu corpo retorna à sua alma; o momento em que começa a realmente trabalhar no que quer. Não tem sido fácil, ela admite a si mesma com um sorriso debochado na cara: trabalhar, cuidar de uma casa e trabalhar um pouco mais.
Toma mais um gole do tinto e sente toda a acidez do bourgogne descer queimando, lembra que poderia ter simplesmente desistido, continuado na agência e só. É... só naquelas, né? As horas extras matavam suas forças de tentar qualquer coisa que saísse do programado. Nunca fora tão infeliz quanto naquela época; pós faculdade, vida adulta, casa nova, e trabalho, muito trabalho.
E ele via toda essa infelicidade, sentia toda a insatisfação transpirar pelos poros dela. Sentia ela evaporar por debaixo dele quando transavam. Sabia que ela não estava lá. Então, ele se comprometeu a ajudá-la a ser feliz, e não desistiu até que ela se convencesse do mesmo. Ele tem estado lá por todo o caminho, desde a troca de um emprego que proporcionava a ela uma verba absurda por um cargo mais tranquilo em que ela pudesse sair no horário, até ter menos tempo dela pra ele.
Não que agora ela trabalhe menos. Muito pelo contrário. Trabalha duas vezes mais, mas trabalha com gosto, com sorriso na cara de quem tem se realizado a cada dia. Eles sorriem mais um para o outro, têm trocado mais juras de amor e mais sacanagens ao pé do ouvido. As transas matinais são constantes e revigorantes. Eles sorriem para estranhos no metrô e o fazem porque sorriem de dentro para fora.
Ele viaja demais, pensa ela. Mas nunca está em falta. Falam-se todo santo dia, mesmo quando ele está em Manaus e ela ali, na Bela Cintra mesmo. Quanto tempo exatamente faz que ele está viajando dessa vez? Faz muito, ela nem se lembra quanto.
Volta seus olhos para a página, sobe a barra, começa a ler outra vez. Muda uma pontuação aqui, um conectivo ali e olha para o vazio. Uma cena se forma em sua cabeça e ela sorri. A cena não é produto da imaginação dela, é só a reencarnação de uma conversa que os dois tiveram no banheiro certa vez: ela sentada no vaso sanitário enquanto ele escovava os dentes. Era uma conversa sobre... sobre o que mesmo? Não importa. Ela preenche as lacunas de uma conversa muda com a história de suas personagens.
Está tão concentrada no diálogo que não ouve o trinco da chave tetra girar na porta. Ele entra, põe a mala no pequeno hall e se debruça sobre o batente da entrada da sala. Não resiste à cena. Ela vestindo sua camiseta, com um coque solto no topo da cabeça, escrevendo ao som do último vinil que compraram juntos. Coça a barba e olha para dentro da cozinha, repara a garrafa pela metade em cima da pia ao lado da louça que se acumula, mas ele não liga. O clima que envolve o apartamento deles o deixa extasiado. É excitante vê-la inspirada. Seminua e inspirada. Levemente embriagada, usando sua camisa, seminua e inspirada.
Ele se segura para não estragar o momento, mas sente falta dela; do cheiro de sua pele, de seus lábios macios passeando por seu abdome. Sente o estômago revirar em ansiedade. Sorri levemente, cruza os braços sobre o peito e, ainda recostado sobre o batente, diz, “cê tinha razão, o Velvet Underground cai bem melhor em você do que em mim”.
Ela se vira instantaneamente, em choque. Não esperava vê-lo antes de sábado de manhã, quando desejava secretamente que ele a acordasse ao chegar e fariam amor até o estômago reclamar por um brunch tardio. Aí, então sairiam para a Benedito Calixto procurar discos do Bowie, comer deliberadamente e voltar pra casa no fim da tarde.
Ela olha para baixo e, como uma criança pega no flagra, sorrateiramente levanta os dedos do teclado e sussurra, “eu disse”; fecha os olhos ao sorrir, sente o efeito de meia garrafa de Pinot Noir num estômago vazio. “E... Chet Faker? Fenomenal”, ela aponta para a vitrola no canto da sala e sorri com a língua entre os dentes.
Ele impulsiona o próprio corpo contra o batente para sair do estado de repouso, ricocheteando contra o ar, dá dois passos em direção a ela e espera, é a vez dela de encontrá-lo no meio do caminho.
Talvez fosse o vinho, ou só a necessidade de provocá-lo, mas ela levanta maliciosamente devagar, observando os olhos dele recaírem sobre suas coxas, subindo por seus seios livres de sutiã e repousando, por fim, em seus olhos. Só então ela dá os três passos restantes até ele; ficam frente a frente sem se tocar.
“achei que ia me esperar para ouvirmos juntos”, ele provoca sem tirar o sorriso do rosto.
“desculpa, você sabe como eu fico com discos novos”.
“impaciente”.
“é...”, ela sorri encabulada. Cabe a ela quebrar essa barreira translúcida entre eles; leva as mãos aos ombros dele e os acaricia. “Oi”, diz ela, medindo cada centímetro do rosto dele, só para conferir se não havia perdido nada.
“Senti sua falta”, ele responde, impondo a verdade universal daquele instante para ambos.
Seus corpos dispensam introduções, se conhecem do começo ao fim; funcionam sozinhos em um sistema extremamente eficiente. ‘Love & Feeling’ começa a tocar ao fundo, é Chet provendo a trilha sonora adequada para o momento.
O roteiro continua lá, pela metade. Mas a situação parece invertida, a solidão agora é do maldito cursor que continua a piscar. O relógio parece ter perdido o interesse em apontar as horas, danem-se elas. E logo, Nico e Lou Reed caem aos pés dela, silenciados na quase-sexta-feira. A tela se apaga, o apartamento continua submerso num tom negro como o breu, as únicas sombras que dançam sob a luz do abajur agora são Ela e Ele.

QUE TAL MAIS UM?

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