Combustão
8.1.14Observa as chamas consumirem tudo o que já fora um dia. O fogo dança como uma flâmula que sobe, e queima e crepita; o som quase inexistente dessa força tão faminta é de uma beleza trágica.
O calor é quase insuportável, mas há torpor o bastante para mantê-lo prostrado. Os olhos lacrimejam a fumaça cinza chumbo que condensa acima da fogueira. A caixa vazia e o corpo pesado sobre os pés ficam apoiados na terra batida. Uma fotografia da páscoa de 2003 se desprende do aglomerado que se desintegra aos poucos – das pontas para o meio, como um padrão que se repete até que se finde. Ela, a foto, voa como se pulasse do prédio em chamas, tenta ser uma lembrança inapagável, quer desesperadamente resistir à tragédia de uma história interrompida, se manter uma gravura do que não existe mais.
Ele se abaixa, captura a fugitiva e lembra que a Polaroid azul que tirou essa foto quase caiu na piscina em Juqueí. Naquela época, os braços eram mais dispostos a abraçar e mesmo na escuridão, as mãos encontravam o caminho para enlaçar os dedos frouxamente, só para estarem conectados; naquele feriado, as bocas ora eram sorrisos, outra eram beijos; a camiseta do Bowie trazia “I, I will be king and you, you will be queen” à plenos pulmões, agora ele sussura só “though nothing will keep us together”.
Limpa as extremidades queimadas da foto, vai até meio caminho de enfiá-la no bolso e para; sem redenções dessa vez. Aproxima-se das grandes labaredas e seus olhos ardem, precisa se convencer que é o calor e não as lágrimas. Olha uma última vez para o par de sorrisos abertos e de corpos colados e os atira ao fogo. Ele ri, parece metáfora de seu relacionamento, sente-se como um clichê barato de quem queima as cartas depois que tudo acaba.
As chamas são nada mais do que brasa agora, envolve os braços ao redor do próprio corpo para se proteger do choque térmico entre o calor que havia na fogueira e o vento que sopra no descampado. Antes de entrar no carro, guarda na memória a pequena pilha desforme de cinzas, não há mais nada ali. Precisava daquilo: ver o fogo devorar seu passado com a mesma ânsia que ele tinha de esquecê-lo.
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