Três minutos
8.1.13
Três minutos. Três minutos
que pareciam eternos perto da mudança drástica que aconteceria depois que eles
se passassem.
Um sinal para normal, dois
sinais para mudança. A coisa mais simples do mundo, como fazer xixi em um
palito, pode mudar a vida, assim, de repente.
E tantos “tics” e “tacs” que
cansavam sua essência. Antes eram “Techs” e “TOCs”, eram manias e nerdices,
antes era simples e descomplicado. Agora podia ser tudo mais complexo e
sentimental. Podia ser delicado. Seria rosa ou azul? Na dúvida, optaria pelo
amarelo, certeza. Depois dos três minutos, seus brinquedos eletrônicos e
bugigangas espalhafatosas dariam lugar aos “fons” e “pirilins” de coisas macias
de se morder e babadores coloridos. Pompons e tutus ou chuteiras e carrinhos.
Ou ambos. E se fosse mais de um? Meu deus, a vó enlouqueceria na felicidade de
duas duplas de perninhas gordinhas e pezinhos que pareceriam pãezinhos prontos
para morder. E bochechas rosadas e carequinhas cheirosas.
E fraudas. Noites em claro.
Dias também. E idas ao medico no meio do feriadão de carnaval. Nada de viagens
românticas a dois para Paris no outono que vem.
Como contar a ele? “amor, a
família vai aumentar”? “Vamos ter um bebê”? “Estamos grávidos”? “A cegonha nos
mandou lembranças”? Todas as formas mais bregas de se dizer ao marido que está
grávida já foram usadas. E todas as vezes lhe revirava o estômago em pensar que
entre esses três minutos ela era a única a saber da possibilidade do grande
acontecimento de sua vida e, apesar de não ter mais o controle de ter, enfim,
um óvulo fecundado ou não, tinha o controle pleno da informação. Tinha a
audácia de assumir seu egoísmo materno e pensar que, por alguns instantes, era
a única mulher semi-grávida no mundo. Que era a única com a dádiva da dúvida
entre um ventre habitado ou não.
Tinha a certeza absoluta da
alegria que estamparia o rosto do cônjuge. Afinal, ele esperara, mais do que
ninguém, por esse guri (ou guria) que estava por vir. Nunca fecharam data ou
programaram nada, tudo era na surpresa, tudo de supetão. Levavam uma vida
pacata e cheia de criatividade. Ele, fotografo. Ela, escritora. Estavam
acostumados a dar vida. Aos frames capturados com perfeição que selavam um
momento mágico para sempre. Davam vida aos parágrafos que davam vida às
personagens. Davam vida ao estático e ao ficcional. Dar vida à um ser humano, à
junção de DNAs e divisão de células, ao acontecimento genético-milagroso que
era gerar um pequeno ser num ventre completo, não deveria fugir de dar vida aos
pequenos e grandes pedaços de história tecidos e emendados por frases e fotos.
Ainda faltava muito?
Lembrou-se do dia em que se conheceram, de como não se amaram de pronto. Só se
conheceram. Por meio de amigos dos amigos de amigos num ano novo já velho. De
como ele levou uma foto com ela de canto e ela o colocou em uma de suas
histórias. De como, sem foco preciso, se registraram um ao outro para lembrarem
de se encontrar anos mais tarde. Ele de casamento marcado, de viagem também. De
malas e máquinas prontas para uma nova fase. Ela com o futuro corporativo nas
mãos. De consultora a gerente, de faz-tudo a chefe de departamento em pouco
tempo. Jovem e obstinada, estava no topo, mas solitária e descontente.
E como tudo na vida dos dois,
se encontraram por um acaso, numa exposição de Max Wanger. Ela atrás de
inspiração, ele atrás de contatos. New York, três anos atrás. Foram tão longe
para um reencontro marcado pelas coincidências casuais. Têm os mesmos gostos,
os mesmos olhares, uma hora ou outra iriam se trombar, era evidente. E de
repente, depois de uma tarde de reencontros e contos e histórias, o noivado
dele fora por água abaixo e a carreira dela, como alto escalão da vida
corporativa paulistana, ficara para trás. A ex-noiva encontraria um príncipe
encantado que caberia nos seus sonhos e o universo corporativo sobreviveria com
uma soldada a menos no fronte.
Nada foi rápido, apressado ou
desenfreado. Tomaram o tempo que precisavam para, enfim, conhecerem um ao
outro. E se lembraram que, se tivessem se amado de pronto, estariam juntos há
tempos. Mas nada se encaixaria como encaixa agora.
Largaram o carro e passaram a
usar bicicletas, comida orgânica cultivada no topo do prédio de três andares
típico do Upper East de Manhattan. Casaram-se em cerimônia íntima,
não-religiosa, mas muito musical. Trouxeram quem estivera mais próximo e,
claro, os amigos dos amigos de amigos estavam lá, afinal, se não fossem por
eles, nada teria acontecido.
Um minuto ainda? A vida tem se
desenrolado de forma simples. Tem sido uma aventura acordar ao lado dele todos
os dias. Todo dia é diferente do dia anterior e nem se fossem mil anos, nada
seria igual a ontem e tudo diferente de amanhã. Ele é engraçado e carrancudo
quando acorda sem humor. Ela bem sabe quando pode e quando não pode provocá-lo.
Às vezes escolhe fazê-lo pelo simples prazer para aporrinhá-lo e tirar-lhe os
olhos sérios do Times matutino. Ela
brinca com fogo, ele, vendado, atira facas em seu próprio ego. Os dois se amam
sem pressões, pelo menos não tão expostas.
Mudar de país fora um grande
desafio. Sair da metrópole São Paulo e pisar na megalópole New York foi como
sair do verão e entrar no inverno. Literalmente. Ele sempre se comunicou melhor
por enquadros, foi fácil se adaptar. Ela sempre precisou das palavras e apesar
de amar a língua inglesa, precisava melhorar seu vocabulário. Entre “whoms” e
“whens”, entre “Avenues” e “Streets”, se acharam bem perto do Central Park. O
começo foi duro, moravam longe de tudo, moravam longe da NY que achavam
conhecer, mas as coisas melhoraram, ele se achou como fotografo conceituado,
requisitado. Ela se achou como escritora e roteirista, sitcoms eram o limite.
Construíram uma casa, um lar,
uma história, uma rede de amigos; juntaram parentes e paredes. Escreveram,
fotografaram, registraram. E mesmo não se amando de pronto, hoje se amam mais
do que a imaginação pode alcançar. Ela não conseguiria descrevê-los em um
romance inteiro e ele não conseguiria imortalizar tal sentimento nem em um
milhão de fotos.
E mesmo depois de tudo isso,
ela se vê de olhos semicerrados de frente para a pia do banheiro. Ele bate à
porta e ela estática. Os três minutos se foram, é agora ou nunca. Eles
construíram tanto e agora era a hora de construir uma família. Não que já não
fossem uma, mas completá-la fazia todo o sentido. Doar um pouco dela, um pouco
dele. Misturar tudo. Tomara que tenha os olhos dele e os pés, ah, o nariz
também. Tomara que saia com o meu cabelo. Tomara que tenha o nosso gosto
musical. Tomara que durma a noite inteira, como minha mãe me disse que eu
fazia. Muitos “tomaras”, mas será que essa era a hora?
Ele bate à porta de novo. E a
preocupação de saber se ela está bem? E ela em silêncio. Abre um olho, depois o
outro. Olha-se no espelho e vê uma semi-mãe, se sente mãe, só precisa
confirmar. Um...dois pauzinhos. Bingo! É mãe!
Mãe? Três minutos e dois
pauzinhos fazem dela mãe? Seu estômago revira dentro do corpo e ele bate à
porta, a essa altura, desesperado. E então, como epifania de quando se põe a
escrever desembestadamente, ela conclui. O que faz dela mãe não são os minutos,
nem os pauzinhos. O que faz dela mãe e faz do homem batendo à porta pai, é a
parte da arte que cabe aos dois. A arte de dar vida à personagem mais
importante que já criaram. É passarem de criaturas a criadores. É, finalmente,
poder descrever o amor (que veio atrasado) em uma criatura tão pequenina, tão
minimamente viva, mas já tão significante, tão importante e amada.
Ela abre a porta. “Vamos ser
três,” diz simplesmente com os olhos d’água. E ele sorri, encostado no batente.
Parte alívio por ela estar bem, parte sucesso e euforia. Seria pai. Seriam
pais.
Três minutos, dois palitos e
nove meses pela frente. Os dois (que, na verdade, já são três) se abraçam por
minutos incontáveis e ela já não lembra mais como contar minutos, ou pauzinhos.
Agora ela conta semanas e centímetros. Agora, além das histórias, ela conta
fatos, um a um, à todos que perguntam. E ela sempre diz “foram os três minutos
mais longos da minha vida”.
1 Comentários
Demais, gostei muito da leitura.
ResponderExcluirCom detalhes interessantes e mto bonito no final.
Só não sei quem sou! hahaha
Obs.: Para incentivar mais publicações - eu conto quem sou no comentário do terceiro texto.