Inquietações de quem já foi Narizinho
21.1.13
Andei
lembrando no tempo em que fui Narizinho. Do tempo em que o tempo não tinha a
menor pretensão de passar. Lembrei-me de Emília que carregava debaixo do braço
até na hora do bolo de fubá. Quentinho. Com suco de laranja e bolinho de chuva.
Sem chuva, só sol. Aquele sol que queimava enquanto corríamos, eu, Pedrinho,
Emília e Visconde de Sabugosa, procurando uma jabuticabeira pra roubar amora do
pé.
E
agora, José? Quem é que vai me trazer todas aquelas lembranças de volta? E bons
joelhos ralados que me permitam correr de novo em volta da roda do Corre-Cotia?
Ora vestia vestidos vermelhos-dentuços, ora trazia uma panela na cabeça,
carregando a maluquice faceira que Ziraldo assina em colorido.
Ainda
lembro de me esconder atrás das longas saias de Tia Nastácia que ria até ficar
sem ar de minha esperteza covarde. E me dizia “pare de sonhar tanto assim,
menina! Um dia vai se misturar ao que sonha e ninguém te tira de lá”. Lembro que deitava
sobre a grama verdinha, ouvindo o sabiá cantar que sim, ele sabia assoviar, sentindo,
nos pés descalços, minha liberdade de estar e ser e sorrir sem pensar.
Se Anastácia
ainda estivesse por perto, ao certo, me diria “cruz-credo, menina! Precisa
sonhar um pouco mais. Espichou, perdeu todo o encanto. Botou de canto o sítio,
o fubá e até Emília, que anda desbotada, está jogada na cadeira de balanço da
vovó.”
Deixei
de ser Narizinho pra ser “grande”. Agora sou o que chamam de “responsável” e
“madura”. Então me pergunto o que Saci acharia disso tudo. Provavelmente diria,
com um meio sorriso encrenqueiro, para eu tomar cuidado pois “laranja que muito
amadurece pode apodrecer.”
Meu
deus, bons tempos eram aqueles! Em que para projetar uma casa, me bastava giz
de cera e para fechar um negócio, eu era rica de tampinhas de tubaína!
Narizinho
então, virou conto e ando cansada de contar a mesma história da Carochinha.
Ando cansada de contar dinheiro e vantagem. Por que não me deixam contar
reinações? E de como vovó Benta me tricotava meias para as noites frias?
Parada
na fila do banco há horas, pensando que queria mesmo era que doutor Caramujo me
desse uma daquelas pílulas que curam de tudo para me curar da monotonia. Como
Princesa do Reino das Águas Claras, ordenaria o dia de folga! Ordenaria que
todos se divertissem, enfim, de fato. Mas perdi o reinado depois de um
conturbado divórcio, forçado, do Príncipe Escamado. Coitado! Chegou-se o
momento que me faltava tempo para olhá-lo nos olhos. O trânsito para além do
riacho anda engarrafado e tenho a leve impressão de que Escamado, já revoltado,
me trocara por uma tal de Iara.
E
depois de crescida, aprendi a arte de polir meu refrão. No escritório, velório
ou reunião, discurso notório é meu lema. Mas não quero mais ter um tema! Quero
ter de volta a atitude de Emília, que abria a torneirinha de asneiras e
falava e inventava sem razão. Eis então, que em divagações como essas, vejo
Monteiro- o Lobato!- que me olha de longe, por de trás do bigode austero; ri um
riso triste, de quem vê um girino se espichar sem controle e me pede que volte
alguns anos.
Se tudo
der certo, deixo a meia fina de lado, e volto ao sítio descalça, cantando forte,
em alto e bom som. E aviso, de antemão, se me perguntarem quem sou, direi tal
qual Emília ao responder ao Visconde: "Sou
a independência ou Morte"!
Por sorte, me deixo ser pequena de novo enquanto meu
sono não parte. Esse que me toma de assalto, me vira do avesso e me cede
imaginação. Permito então que me erga, saio do chão. Sou Narizinho de novo, por
mais 5 minutos antes de ouvir lá de longe, do fundo das águas, o despertador
anunciar tal constatação: terça-feira, chuvosa.
1 Comentários
*Durante a minha leitura eu fiz o mesmo ritmo de Emília nessa história:
ResponderExcluir- A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais [...] A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre. – E depois que morre?, perguntou o Visconde. – Depois que morre, vira hipótese. É ou não é? (Emília).
*Mas todo o tempo eu me lembrava que era de Narizinho que se falava o texto.
Fabio Dimov