Chuva, Harlem & Jazz

26.4.15




Ele botou Miles Davis para dizer que nem todas as despedidas precisavam ser tristes. Bye Bye Blackbird tocava ao fundo, enquanto ela esperava a canção fazer dos dois uma melodia etérea, uma despedida efêmera que se vai quando o último acorde reverbera.

Os metais rugem da vitrola, neutralizando a tristeza profunda que a toma de assalto. Quem parte e quem fica não faz a menor diferença; ela já não sabe se é ela quem vai ou se é ele quem a abandona. Já não sabe se são as palavras dele jogadas aleatoriamente ou se é apenas seu cérebro que insiste em não fazer as sinapses corretas para entender o ‘adeus’.

A chuva cai uniformemente por de trás dos vidros da janela, uma cortina de gotas se ilumina diante do poste de luz na rua. Os relâmpagos clareiam a cama dela de tempos em tempos; espaços, são clarões seguidos de timbres graves que estremecem o céu negro da noite que caminha sobre o relógio.

Ela permanece sobre o parapeito, esperando que a chuva cesse ou aumente; esperando que essa chuva lhe embale de volta ao sono. Quase se esquece da seção vazia no guarda-roupas, quase se esquece de Miles. Quase se esquece de que foi ele quem partiu, no fim das contas.Mas ela sabe – e ele também – que nunca houve opção. Nunca puderam escolher: é sempre ele quem sai pela porta, quem entra apressado no táxi. E é sempre ela, ante a janela, olhando o carro amarelo desaparecer no horizonte; a xícara de chá em uma mão e o cigarro na outra.

E na espera que parece eterna, ela toca Everytime We Say Goodbye do Coltrane por saber que ele acha essa uma canção displicente; por saber que se a partida fosse feita por meio dela, ele não conseguiria entrar no táxi mais uma vez, e ficariam a noite toda ouvindo o velho Chet tocar As Time Goes By.

A chuva cai tão impetuosa agora que poucas pessoas têm a coragem de empunhar seus guarda-chuvas diante do vendaval; de nada eles servem, seus portadores parecem encharcados na escuridão solitária do Harlem. Onde ele deve estar agora, ela pensa.

Ele está parado no trânsito de Manhattan, olhando pela janela, a água que desce dos céus e que parece pousar toda sobre o teto do táxi de bancos encardidos; no chacoalhar dos relevos e buracos da  125th Street, a havaiana dança desengonçada presa ao painel do Cadillac.

Por um instante, é quase como se ambos olhassem pela mesma janela, para o mesmo dilúvio, vendo a mesma saudade. Ela então ri da audácia dele, de seu meio-sorriso, e traga o cigarro; quase pode passar as mãos pelos cabelos meticulosamente alinhados e ordenadamente cortados rente à cabeça dele – herança do exército que ainda carrega com ele. Ela pode sentir o desespero dele, onde quer que ele esteja.

A chuva o inspira e ele quer, desesperadamente, compor. Os longos dedos, que mais cedo viajavam sobre o corpo dela, agora tamborilam sobre a case de seu trompete. Ele observa como as pessoas se escondem como podem; como debaixo do temporal, são todos os mesmos: ricos, pobres, homens, mulheres, negros, brancos – a chuva é tão feroz que não distingue opostos, ela apenas castiga sem ver a quem, e molham-se todos aqueles que nela estiverem.

Ela se encosta sobre a cortina de linho cru e inspira os resquícios do perfume dele em seu vestido, que tem o zíper aberto da metade das costas para cima. Os dias serão o intervalo entre a partida e o retorno dele; entre onde pararam e quem serão após a sua chegada. Um intervalo na vida enquanto seus lençóis favoritos estão na lavanderia, enquanto o pianista favorito deles não volta o Birdland.

Ele contorna as linhas do próprio maxilar em sinal de impaciência. Que, em um piscar de olhos, sejamos nós de novo, ele pensa. E que, assim como todas as outras, essa despedida seja só uma desculpa para ela ocupar a vitrola. Ele então ri, pensando que os discos estarão organizados de uma maneira que só ela consegue dispô-los, que ela trata a música como só ele mesmo faz: ela sendo a musa e ele, seu fiel compositor.

As pálpebras pesadas são indício de que o corpo dela começa a ceder ao cansaço, tira os olhos da rua para observar o quarto por instantes: a cama continua da mesma forma como quando se levantaram; os lençóis embolados no meio do colchão, os travesseiros perdidos sobre o tapete, inúteis. E como se fosse possível, a chuva engrossa ainda mais seu tom, não há como identificar o que há do outro lado da rua; escuridão e tudo mais.

Seus olhos repousam sobre os discos espalhados pelo carpete. Tem vontade de organiza-los, mas o cansaço reclama com um bocejo; essas noites de vigília sob a janela ainda vão derruba-la. O cômodo mergulha num silêncio quase profano - só o barulho do temporal que permanece do lado de fora – e ela ouve os dedos dele dançando sobre a música, e anseia por seu retorno. Porque quando ele volta, a casa se enche de vida, se enche dessas notas todas que saem do trompete e que ele diz serem todas dela.

Os carros se enfileiram na chegada ao LaGuardia e ele ainda está absorto em seus pensamentos quando o taxista grego levanta sua voz no que parece ser sua quinta tentativa em avisá-lo de que chegaram ao destino combinado. Ele hesita alguns milésimos de segundos, paga 30 dólares e sai rapidamente para pegar o restante de sua bagagem do porta-malas. Mesmo com o mal tempo, as aeronaves cortam a escuridão em direção aos mais variados destinos. New Orleans, duas semanas – suspira – logo acaba, logo Harlem de volta, e entra no aeroporto.

A cidade que nunca dorme parece estar aos prantos com sua partida, mas se acalma aos poucos, num luto discreto. A cidade sussurra melodias de ninar, certamente que a pedido dele, ela pensa, para que durma um sono revigorante, desses que fazem os ponteiros do relógio se apressarem.

Enfim, é um complô pacífico entre o jazz, a noite e o temporal, eles que lhe acariciam os ouvidos para fazer dessa despedida um roteiro bem escrito.

E eles parecem olhar para as mesmas pequenas luzes que se pronunciam na escuridão noturna; da pequena janela oval ele procura uma janela de luz acesa e uma vitrola rodando ali no Harlem, enquanto ela, ainda no parapeito da janela do Harlem,  procura entre as nuvens, uma janela oval que voa em direção a New Orleans. Eles olham para que o mesmo relógio corra, e esperam que que o pianista favorito deles volte logo ao Birdland.

QUE TAL MAIS UM?

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