O apartamento está engolido pela escuridão. O abajur de pé no canto da sala e a tela do Macbook criam sombras que fazem companhia a um cômodo quase sem móveis. A cidade parece silenciar-se para ouvir ao disco qualquer que gira na vitrola; o chiado emitido pelo arrastar da agulha no vinil embala a feitura do roteiro pela metade.
Ela
olha para o cursor que pisca insistentemente na nova página em branco e, como
quem espera que uma cena inteira apareça instantaneamente, pisca de volta por
de trás dos grandes óculos de aros pretos –que ainda é obrigada a usar mesmo
depois da Lasik. Sente-se humilhada: é como se a tal da Inspiração gozasse da
cara dela, como se risse por de trás da tela de retina. Ela ergue a grande taça
de Pinot Noir de cima da bancada e encara o bloqueio criativo.
Olha
o relógio de parede e verifica, 22h47. Esteve sentada no mesmo lugar por mais
tempo do que deveria. Apoia a perna esquerda na cadeira cor de vinho, abraça o
joelho e encosta o queixo ali. Veste nada além de uma calcinha roxa e uma
camiseta que, num ato desesperado de saudade, foi retirada da pilha de roupas
para lavar; selecionara a já gasta Venus in Furs do Velvet Underground de
milnovecentosealgumacoisa que ele tanto gosta. O cheiro dele e o conforto da
longa camiseta parecem mais apropriados para uma quinta-feira a noite. E chega
a ouvir a gargalhada dele ao zombar da "mulherzice" dela; quase o vê
encostado no batente da porta olhando para ela com olhos de quem sabe o que
quer, pode quase sentir o gosto dele entre os goles de vinho tinto.
Confere
o relógio de novo, 22h52. Deveria parar. Lembra da louça na pia, da roupa no
cesto e franze o cenho. Ser roteirista em seus desejos costumava ser mais
fantástico. O fato é que quando todo mundo vai pra casa descansar, é o momento
em que seu corpo retorna à sua alma; o momento em que começa a realmente
trabalhar no que quer. Não tem sido fácil, ela admite a si mesma com um sorriso
debochado na cara: trabalhar, cuidar de uma casa e trabalhar um pouco mais.
Toma
mais um gole do tinto e sente toda a acidez do bourgogne descer queimando,
lembra que poderia ter simplesmente desistido, continuado na agência e só. É...
só naquelas, né? As horas extras matavam suas forças de tentar qualquer coisa
que saísse do programado. Nunca fora tão infeliz quanto naquela época; pós
faculdade, vida adulta, casa nova, e trabalho, muito trabalho.
E
ele via toda essa infelicidade, sentia toda a insatisfação transpirar pelos
poros dela. Sentia ela evaporar por debaixo dele quando transavam. Sabia que
ela não estava lá. Então, ele se comprometeu a ajudá-la a ser feliz, e não
desistiu até que ela se convencesse do mesmo. Ele tem estado lá por todo o
caminho, desde a troca de um emprego que proporcionava a ela uma verba absurda
por um cargo mais tranquilo em que ela pudesse sair no horário, até ter menos
tempo dela pra ele.
Não
que agora ela trabalhe menos. Muito pelo contrário. Trabalha duas vezes mais,
mas trabalha com gosto, com sorriso na cara de quem tem se realizado a cada
dia. Eles sorriem mais um para o outro, têm trocado mais juras de amor e mais
sacanagens ao pé do ouvido. As transas matinais são constantes e revigorantes.
Eles sorriem para estranhos no metrô e o fazem porque sorriem de dentro para
fora.
Ele
viaja demais, pensa ela. Mas nunca está em falta. Falam-se todo santo dia,
mesmo quando ele está em Manaus e ela ali, na Bela Cintra mesmo. Quanto tempo
exatamente faz que ele está viajando dessa vez? Faz muito, ela nem se lembra quanto.
Volta
seus olhos para a página, sobe a barra, começa a ler outra vez. Muda uma
pontuação aqui, um conectivo ali e olha para o vazio. Uma cena se forma em sua
cabeça e ela sorri. A cena não é produto da imaginação dela, é só a
reencarnação de uma conversa que os dois tiveram no banheiro certa vez: ela
sentada no vaso sanitário enquanto ele escovava os dentes. Era uma conversa
sobre... sobre o que mesmo? Não importa. Ela preenche as lacunas de uma
conversa muda com a história de suas personagens.
Está
tão concentrada no diálogo que não ouve o trinco da chave tetra girar na porta.
Ele entra, põe a mala no pequeno hall e se debruça sobre o batente da entrada
da sala. Não resiste à cena. Ela vestindo sua camiseta, com um coque solto no
topo da cabeça, escrevendo ao som do último vinil que compraram juntos. Coça a
barba e olha para dentro da cozinha, repara a garrafa pela metade em cima da
pia ao lado da louça que se acumula, mas ele não liga. O clima que envolve o
apartamento deles o deixa extasiado. É excitante vê-la inspirada. Seminua e
inspirada. Levemente embriagada, usando sua camisa, seminua e inspirada.
Ele
se segura para não estragar o momento, mas sente falta dela; do cheiro de sua
pele, de seus lábios macios passeando por seu abdome. Sente o estômago revirar
em ansiedade. Sorri levemente, cruza os braços sobre o peito e, ainda recostado
sobre o batente, diz, “cê tinha razão,
o Velvet Underground cai bem melhor em você do que em mim”.
Ela
se vira instantaneamente, em choque. Não esperava vê-lo antes de sábado de
manhã, quando desejava secretamente que ele a acordasse ao chegar e fariam amor
até o estômago reclamar por um brunch tardio. Aí, então sairiam para a Benedito
Calixto procurar discos do Bowie, comer deliberadamente e voltar pra casa no
fim da tarde.
Ela
olha para baixo e, como uma criança pega no flagra, sorrateiramente levanta os
dedos do teclado e sussurra, “eu disse”;
fecha os olhos ao sorrir, sente o efeito de meia garrafa de Pinot Noir num
estômago vazio. “E... Chet Faker?
Fenomenal”, ela aponta para a vitrola no canto da sala e sorri com a língua
entre os dentes.
Ele
impulsiona o próprio corpo contra o batente para sair do estado de repouso,
ricocheteando contra o ar, dá dois passos em direção a ela e espera, é a vez
dela de encontrá-lo no meio do caminho.
Talvez
fosse o vinho, ou só a necessidade de provocá-lo, mas ela levanta maliciosamente
devagar, observando os olhos dele recaírem sobre suas coxas, subindo por seus
seios livres de sutiã e repousando, por fim, em seus olhos. Só então ela dá os
três passos restantes até ele; ficam frente a frente sem se tocar.
“achei que ia me esperar para ouvirmos
juntos”, ele provoca sem tirar o sorriso do rosto.
“desculpa, você sabe como eu fico com
discos novos”.
“impaciente”.
“é...”, ela sorri
encabulada. Cabe a ela quebrar essa barreira translúcida entre eles; leva as
mãos aos ombros dele e os acaricia. “Oi”,
diz ela, medindo cada centímetro do rosto dele, só para conferir se não havia
perdido nada.
“Senti sua falta”,
ele responde, impondo a verdade universal daquele instante para ambos.
Seus
corpos dispensam introduções, se conhecem do começo ao fim; funcionam sozinhos
em um sistema extremamente eficiente. ‘Love & Feeling’ começa a tocar ao
fundo, é Chet provendo a trilha sonora adequada para o momento.
O
roteiro continua lá, pela metade. Mas a situação parece invertida, a solidão
agora é do maldito cursor que continua a piscar. O relógio parece ter perdido o
interesse em apontar as horas, danem-se elas. E logo, Nico e Lou Reed caem aos
pés dela, silenciados na quase-sexta-feira. A tela se apaga, o apartamento
continua submerso num tom negro como o breu, as únicas sombras que dançam sob a luz do abajur agora são Ela e
Ele.