Ele botou Miles Davis
para dizer que nem todas as despedidas precisavam ser tristes. Bye Bye
Blackbird tocava ao fundo, enquanto ela esperava a canção fazer dos dois uma
melodia etérea, uma despedida efêmera que se vai quando o último acorde
reverbera.
Os metais rugem da
vitrola, neutralizando a tristeza profunda que a toma de assalto. Quem parte e
quem fica não faz a menor diferença; ela já não sabe se é ela quem vai ou se é
ele quem a abandona. Já não sabe se são as palavras dele jogadas aleatoriamente
ou se é apenas seu cérebro que insiste em não fazer as sinapses corretas para
entender o ‘adeus’.
A chuva cai
uniformemente por de trás dos vidros da janela, uma cortina de gotas se ilumina
diante do poste de luz na rua. Os relâmpagos clareiam a cama dela de tempos em
tempos; espaços, são clarões seguidos de timbres graves que estremecem o céu
negro da noite que caminha sobre o relógio.
Ela permanece sobre o
parapeito, esperando que a chuva cesse ou aumente; esperando que essa chuva lhe
embale de volta ao sono. Quase se esquece da seção vazia no guarda-roupas,
quase se esquece de Miles. Quase se esquece de que foi ele quem partiu, no fim
das contas.Mas ela sabe – e ele
também – que nunca houve opção. Nunca puderam escolher: é sempre ele quem sai
pela porta, quem entra apressado no táxi. E é sempre ela, ante a janela, olhando
o carro amarelo desaparecer no horizonte; a xícara de chá em uma mão e o
cigarro na outra.
E na espera que
parece eterna, ela toca Everytime We Say Goodbye do Coltrane por saber que ele
acha essa uma canção displicente; por saber que se a partida fosse feita por
meio dela, ele não conseguiria entrar no táxi mais uma vez, e ficariam a noite
toda ouvindo o velho Chet tocar As Time Goes By.
A chuva cai tão
impetuosa agora que poucas pessoas têm a coragem de empunhar seus guarda-chuvas
diante do vendaval; de nada eles servem, seus portadores parecem encharcados na
escuridão solitária do Harlem. Onde ele deve estar agora, ela pensa.
Ele está parado no
trânsito de Manhattan, olhando pela janela, a água que desce dos céus e que
parece pousar toda sobre o teto do táxi de bancos encardidos; no chacoalhar dos
relevos e buracos da 125th Street,
a havaiana dança desengonçada presa ao painel do Cadillac.
Por um instante, é
quase como se ambos olhassem pela mesma janela, para o mesmo dilúvio, vendo a
mesma saudade. Ela então ri da audácia dele, de seu meio-sorriso, e traga o
cigarro; quase pode passar as mãos pelos cabelos meticulosamente alinhados e
ordenadamente cortados rente à cabeça dele – herança do exército que ainda
carrega com ele. Ela pode sentir o desespero dele, onde quer que ele esteja.
A chuva o inspira e
ele quer, desesperadamente, compor. Os longos dedos, que mais cedo viajavam
sobre o corpo dela, agora tamborilam sobre a case de seu trompete. Ele observa
como as pessoas se escondem como podem; como debaixo do temporal, são todos os
mesmos: ricos, pobres, homens, mulheres, negros, brancos – a chuva é tão feroz que
não distingue opostos, ela apenas castiga sem ver a quem, e molham-se todos aqueles
que nela estiverem.
Ela se encosta sobre
a cortina de linho cru e inspira os resquícios do perfume dele em seu vestido,
que tem o zíper aberto da metade das costas para cima. Os dias serão o
intervalo entre a partida e o retorno dele; entre onde pararam e quem serão
após a sua chegada. Um intervalo na vida enquanto seus lençóis favoritos estão
na lavanderia, enquanto o pianista favorito deles não volta o Birdland.
Ele contorna as
linhas do próprio maxilar em sinal de impaciência. Que, em um piscar de olhos,
sejamos nós de novo, ele pensa. E que, assim como todas as outras, essa
despedida seja só uma desculpa para ela ocupar a vitrola. Ele então ri,
pensando que os discos estarão organizados de uma maneira que só ela consegue
dispô-los, que ela trata a música como só ele mesmo faz: ela sendo a musa e
ele, seu fiel compositor.
As pálpebras pesadas
são indício de que o corpo dela começa a ceder ao cansaço, tira os olhos da rua
para observar o quarto por instantes: a cama continua da mesma forma como quando
se levantaram; os lençóis embolados no meio do colchão, os travesseiros
perdidos sobre o tapete, inúteis. E como se fosse possível, a chuva engrossa
ainda mais seu tom, não há como identificar o que há do outro lado da rua;
escuridão e tudo mais.
Seus olhos repousam
sobre os discos espalhados pelo carpete. Tem vontade de organiza-los, mas o
cansaço reclama com um bocejo; essas noites de vigília sob a janela ainda vão
derruba-la. O cômodo mergulha num silêncio quase profano - só o barulho do
temporal que permanece do lado de fora – e ela ouve os dedos dele dançando
sobre a música, e anseia por seu retorno. Porque quando ele volta, a casa se
enche de vida, se enche dessas notas todas que saem do trompete e que ele diz
serem todas dela.
Os carros se enfileiram
na chegada ao LaGuardia e ele ainda está absorto em seus pensamentos quando o
taxista grego levanta sua voz no que parece ser sua quinta tentativa em
avisá-lo de que chegaram ao destino combinado. Ele hesita alguns milésimos de
segundos, paga 30 dólares e sai rapidamente para pegar o restante de sua
bagagem do porta-malas. Mesmo com o mal tempo, as aeronaves cortam a escuridão
em direção aos mais variados destinos. New Orleans, duas semanas – suspira –
logo acaba, logo Harlem de volta, e entra no aeroporto.
A cidade que nunca
dorme parece estar aos prantos com sua partida, mas se acalma aos poucos, num
luto discreto. A cidade sussurra melodias de ninar, certamente que a pedido
dele, ela pensa, para que durma um sono revigorante, desses que fazem os ponteiros
do relógio se apressarem.
Enfim, é um complô
pacífico entre o jazz, a noite e o temporal, eles que lhe acariciam os ouvidos
para fazer dessa despedida um roteiro bem escrito.
E eles parecem olhar
para as mesmas pequenas luzes que se pronunciam na escuridão noturna; da
pequena janela oval ele procura uma janela de luz acesa e uma vitrola rodando
ali no Harlem, enquanto ela, ainda no parapeito da janela do Harlem, procura entre as nuvens, uma janela oval que
voa em direção a New Orleans. Eles olham para que o mesmo relógio corra, e
esperam que que o pianista favorito deles volte logo ao Birdland.