É de uma formalidade nítida dela para com os outros, esses vultos com os quais ela cruza na rua. Sob o olhar atento de quem procura um pedaço de pele exposta para barganhar; esses olhos de lince que percorrem seu corpo em instantes à procura de carne para degustar. E te come com os olhos, te despe com a mente, e numa sinestesia animal, encosta-lhe as partes para experimentar sua alma.
Sob os abutres que rondam, se
sente exposta. Dia após dia, nua diante da fome que salienta um rebanho no cio.
Mantém-se firme, portanto, e todo dia ela faz tudo sempre igual, se sacode às
seis horas da manhã; pontual. Cobre a pele de malha e os olhos de manha, cobre
o rosto de seriedade que as sobrancelhas quase se juntam no cenho: escudo pra uma escória que mata por
glória ou por virilidade; que estupra por escárnio.
Ela dança entre semelhantes que, num
inferno como o de Dante, julgam com o a faca na jugular de quem não julgar o
outro por ser o que quer. É de bem-querer que ela sorri para estranhos, e cumprimenta
o porteiro, o padeiro, o vigia e a D. Maria do 43. Tudo a contragosto das
velhas, que penduradas nas esquadrias das janelas, observam a morte lenta e
latente de quem por entre os carros trafega, mas a verdade é que se olham no
espelho e velam a própria desordem, já conduzindo post-mortem o cortejo de
mágoas indecifráveis a olho nu.
Ela trabalha de dia, a pé. De pé,
se protege num corredor estreito da República ao Itaim. Corredor que mais
parece o polonês, e ao passar a catraca ela espera sua vez, se espreme, se
estica e foge do abate. Apertada, se sente cozida atarracada em um metro quadrado caro para o que lhe foi prometido.
São horas, barrancos e ofensas a
fio. Prefere ensurdecer a ouvir sobre seu corpo, sua roupa, suas ancas de novo
e de novo e de novo. Não quer um retrato falado daquilo que carrega em si, que
já conhece de olhos fechados.
São esses, os mesmos que gritam
de cima das obras e de dentro de suas gravatas, que ofendem as que sabem de cor
suas curvas, linhas e orgasmos; as que se dão ao trabalho de dar por prazer e
vontade e que não fazem do corpo um anúncio ao pecado, mas ao estado laico de
liberdade de vida, com idas e vindas.
Ao fim dia, se dá por acabado
mais um combate; já tarde, debruça sobre as próprias vitórias, de estar, ser e
ainda poder acordar amanhã, às seis da manhã para fazer tudo igual.