Já é clichê de Cinzas quando ela entra em casa vestida de Marinheira. E nada mais pulsante para uma data tão icônica do que um sol estralado que bate na samambaia pendurada ao lado esquerdo da janela. Nada mais típico, depois de cinco dias de chuva.
Mas é tão cinza quanto
qualquer Finados. E é quarta-feira, depois de ser Pirata, Ladra, Policial,
Aeromoça e, por fim, ancorar na sobriedade moral da quarta de cinzas,
sentindo-se ridícula em sua fantasia de Marinheira.
Caminha até a geladeira, aponta o punho semicerrado em direção à cerveja – vamos comemorar o fim! – mas vai direto ao isotônico que descansa na porta, comprado intuitivamente no aguardo desse momento trágico, mas certo de acontecer.
Essa era a primeira vez que ouvia os ruídos da cidade desde que passara pela portaria do trabalho na sexta-feira; essa era a primeira vez que, de fato, retornava ao apartamento.
A euforia dos bloquinhos
parece começar a se dissolver em seu umbigo como o sal de frutas que borbulha
no copo de requeijão que descansa em cima da pia. Escolhera abacaxi como quem
escolhe a próxima fantasia de baile; um pouco de acidez para equilibrar o pH da
doce serotonina que ainda corre em suas veias.
Senta no sofá e liga a televisão. Alguma apresentadora, que provavelmente passou seu carnaval em casa, começa a discorrer sobre os efeitos da folia. Quem usa a palavra folia, afinal? O determina se quem está no meio da avenida é um folião e não somente um fugitivo?
Balança a cabeça
rapidamente para mudar os pensamentos, muda de canal para não alimentar
reflexões indevidas. Ouve o rugir de um leão – ótimo, um documentário sobre a
savana africana – de longe, é um programa matinal com um domador de leões.
Sente-se enjoada, mas engole a sensação com preguiça de ir até o banheiro.
E lembra que ainda há
outros cômodos na casa; de que eles não foram levados na partilha. “Eu fico com a samambaia, o Anthology, a
sala e a área de serviço. Você leva o quarto, o banheiro, o violão e o Box de
Star Wars”. Não, não foi assim que aconteceu.
O silêncio se molda ao ambiente enquanto ela toma coragem para observar o bilhete amassado que repousa ao lado do cesto de lixo. Saíra na euforia de esquecer os problemas e de mergulhar de cabeça no carnaval que nem se dera conta de que não havia colocado o bilhete dentro do cesto apropriadamente; então ele ali permaneceu por dias e noites, como se não houvesse sido escrito, lido ou amassado. Como se não tivesse acontecido.
O relógio aponta três horas restantes para o meio-dia e precisa voltar ao trabalho. Entra no banheiro e vira o registro ao máximo. Um banho frio dará ao seu sistema nervoso uma distração em manter seu corpo aquecido em vez de bombear cargas de adrenalina em seu estômago; em vez de lhe dar ânsias, ele estará ocupado em chacoalhar seu corpo inteiro para aquecê-lo debaixo da cascata gelada que traz dormência à sua pele.
Mesmo submersa no barulho alto do chuveiro, pode ouvir a tranca da porta abrir e depois fechar; dando um intervalo de um corpo entre um som e outro. Se ao menos sua mãe tivesse as chaves do apartamento, ela pensa. Mas sabia exatamente quem havia entrado.
Espera por longos segundos
até ele atravessar de um batente a outro da porta escancarada do banheiro e
sumir na escuridão do quarto. Ela desliga o chuveiro. “Esqueci meu crachá”,
diz encostado no batente, enquanto ela se cobre com a toalha que estava
pendurada no box.
“Sem problemas, não é como
se essa casa não fosse mais sua”, ela responde enquanto puxa discretamente a tanga enroscada no
registro. “Eu não contaria com
isso”, ele sai, enrolando o cordão do crachá no dedo indicador e tornando a
desenrolá-lo no ar.
Ela
anda atrás dele, ainda encharcada. Para no meio da sala, “eu não entendo o
que você esperava de nós” e uma poça de água gelada se forma aos seus pés.
“Você deveria se aquecer,”, ela observa enquanto ele
gira 180 graus e caminha em direção a ela, crachá enroscado no braço esquerdo.
Ele passa o polegar direito nos lábios dela, engatando suas duas mãos em ambos
os lados do rosto gélido dela, “tá
congelando”.
Ela
olha para o chão, desconcertada, não há mais nada a dizer além de um “tô
bem”.
As
mãos dele se desprendem do rosto dela e caem em repouso, “por que você
sempre tem que tá bem? Feliz, bem-humorada, confortável e segura?”.
Que
tipo de atitude é essa? Ela desacredita de como conseguiu ficar com ele por
tanto tempo. Perde a paciência, perde o respeito que ainda havia ali, “porque
é assim, oras”.
Ele
vira em direção à porta, mas para no meio do caminho, “não deveria ser”.
A última camada que protegia seu coração cai junto com a toalha que a
mantinha coberta. Ali está ela: exposta e infalível. “Então é isso que nos
aconteceu. Vulnerabilidade é o que você esperava de nós”.
Ela
observa as mãos dele fecharem bruscamente, “uma brecha. Um espaço que fosse
meu para cultivá-lo em você” .
Não
tem mais graça, não é mais drama. Nem sabe ao certo o que se tornou isso que
costumava ser amor, “eu te dei uma gaveta”.
O
relógio continua a contabilizar os minutos, o trabalho ainda a espera. O mundo
lá fora, além do Carnaval os espera e eles ali, parados de frente um para o
outro, no meio de uma sala que um dia dividiram mais do que o lugar no sofá.
“Você me deu um vácuo do qual eu não posso ocupar porque a vida não cresce no
vácuo. Não há espaço porque a ausência é muito mais espaçosa do que se imagina.”
O
mundo gira ao contrário e ela tenta ficar no lugar, ela tenta sair do
redemoinho, “você levou o Anthology? Ele deveria ser seu”.
Ele
ri sem a graça de um riso espontâneo, ele ri para não chorar agora, “você não
ouviu nada do que eu disse e você me parece bem vazia agora” . Ele
vai partir, anda até a porta, gira a maçaneta e abre brevemente a porta, ela
perece no meio da sala, encharcada, extasiada, nauseada.
"Ontem foi carnaval e
antes de ontem e antes e antes de ontem. Eu estou vazia porque tratei de deixar
tudo o que tinha na avenida. Para crescer durante o ano. Esfoliões, é isso que
deveriam nos chamar. Esfolia-se a alma para vê-la crescer pelo restante no ano,
e vão-se as feridas e sobras, e cicatrizes. O carnaval é a folga que a alma
precisa para sarar todas as desavenças carnais. E hoje, Cinzas, é dia de
renascer.”
Ela
observa as costas largas dele enquanto ele joga as chaves do apartamento em
cima da mesa ao lado da entrada. Ele não vai mais voltar.
“Recomeçar?”,
e sai sem olhar para trás.
“Começar”, ela diz ao vento, a ela mesma. Talvez a quarta de cinzas não indicasse, afinal, o fim da alegria, mas trouxesse a calmaria de um novo começo.